ROTEIRO
DE VISITA
Ao longo dos
três primeiros séculos de colonização,
o planalto paulista foi ocupado por grandes fazendas de características
muito especiais.
Praticamente auto suficientes, muito pouco do que produziam
era destinado a Metrópole portuguesa, seus proprietários
foram direta ou indiretamente os responsáveis pela
extensão das fronteiras dos territórios do interior,
que esquadrinhavam em busca de pedras e metais preciosos e
do escravo indígena.
As necessidades domésticas exigiam que as instalações
dessas fazendas fossem edificadas nas proximidades de uma
aguarda, à meia encosta, porém as grossas paredes
de barro socado deveriam ser levantadas em terrenos planos;
isso explica porque, nessa região de topografia mais
acidentada, os seus construtores eram obrigados e situá-las
no alto dos morros, onde os aclives são mais suaves.
Você está diante da sede de um desses estabelecimentos
rurais, conhecidos como "casas bandeiristas", denominado
Sítio do Padre Ignácio.
Certamente o conjunto original era composto pela sede e por
outras edificações de apoio, de construção
mais singela, destinadas ao abrigo dos escravos, ferramentas
e animais e ao depósito e beneficiamento dos produtos
escolhidos.
Dessas outras construções não sobraram
senão referências nos antigos documentos e as
mós de seu velho moinho, que foram removidas para o
gramado, em frente à casa.
As paredes de taipa de pilão, a austeridade da economia
e a rígida estrutura familiar condicionaram a arquitetura
solene e despojada que se produziu no período, de poucos
e sombrios cômodos que lembram os ambientes conventuais,
de grandes coberturas e de longos beirais que, ainda hoje,
protegem das águas o barro das paredes, muito embora
este exemplar apresente sua fachada principal guarnecida por
cachorros e colunas inusitadamente esculpidos e o alpendre
rematado por pranchões decorados com os mesmos motivos
encontrados nas folhas de portas e janelas, cujo número,
dimensões e balaústres bem refletem o grau de
reclusão da família.
Nossa visita começa pelo alpendre, um dos espaços
mais complexos e importantes do edifício, onde os estranhos
à família eram recebidos, onde se administrava
as atividades da fazenda, e de onde a escravaria e os agregados
assistiam às missas rezadas na capela doméstica
existente em sua extremidade esquerda. Sem comunicação
direta com o interior da residência, no lado oposto,
vamos encontrar o quarto de hóspedes.
Esses três ambientes compunham o espaço social
da casa.
Os demais cômodos constituíam a parte intima
da edificação. A grande sala era o ambiente
principal e mais nobre, certamente o espaço de convívio
e trabalho da esposa, filhos e escravos domésticos.
Se você observar atentamente a estrutura da cobertura,
notará que os caibros principais se encontram numa
única peça circular de madeira. Para esta sala
se voltam quatro compartimentos laterais, todos de mesmo tamanho
e que tem como forro o piso do jirau.
Um deles, dividido por um tabique de madeira e com um óculo
na parede voltada para o exterior, serviu como sacristã.
Na porta que liga este ambiente à capela, através
de pequenos rasgos, os fiéis se confessavam.
Ainda partindo da sala principal, um corredor dá acesso
aos fundos da casa; ao lado de um cômodo menor, uma
escada nos conduz até o grande jirau que funcionava
como depósito, iluminado e ventilado por diminutas
janelas.
Com certeza você notou a ausência do banheiro
e da cozinha. Como não existisse água corrente,
os moradores da residência utilizavam para a higiene
pessoal o gomil e seu prato, bacias e "bacias de urinar".
Quanto à cozinha, não foram encontrados em nenhum
dos compartimentos vestígios de fogão, lareira
ou mesmo de sua fuligem. A documentação até
agora conhecida sobre esse tipo de edificação
esclarece que, em alguns casos, os alimentos eram preparados
em pequenas construções isoladas, em outros,
no alpendre posterior, quando a casa possuísse mais
de um, ou ainda na sala, seguindo um antigo costume europeu.
O piso do pavimento térreo, atualmente de solo cimento,
era de chão batido, como nas demais casas deste período,
embora algumas delas apresentassem dormitórios assoalhados.
Distribuídas pelos cômodos, vamos encontrar algumas
peças do reduzido mobiliário que guarnecia a
casa: no alpendre, o grande banco e o cabide fixo à
parede; na sala principal, uma mesa, dois armários
e outro cabide de parede; e, num dos quartos, um velho catre.
Foi tudo o que restou dos móveis e equipamentos originais.
Caso você tenha se interessado por esse tipo de edificação,
poderá ainda visitar o Sítio do Mandú,
aqui mesmo no município de Cotia; o Sítio Santo
Antônio, em São Roque, à cerca de 40 Km
de distância e as casas dos sítios do Butantã,
Caxinguí, Tatuapé, Morrinhos e Jabaquara na
cidade de São Paulo, a maior parte delas já
restauradas e com programas de uso implantados.
AS PRIMEIRAS NOTÍCIAS
Talvez nunca se saiba exatamente
em que medida a preservação desta casa se deveu
a dificuldades financeiras ou à consciência das
famílias de imigrantes que dela se tornaram proprietárias
a partir de 1883;as informações disponíveis
mostram que os Cremm e particularmente os Weishaupt zelaram
pelo edifício utilizando-o como depósito e moradia.
Afeitos ao uso do tijolo, empregaram largamente esse material
em todas as reformas necessárias, substituindo as colunas
arruinadas, protegendo das intempéries as bases das
paredes externas e executando apoios, pisos e complementos.
Em 1940, quando o então Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional teve conhecimento
de sua existência, suas condições estruturais
eram relativamente boas, embora a feição original
de sua varanda fosse desconhecida e portanto sua reconstituição
impraticável. No entanto, quatro anos depois, seriam
localizadas, num artigo de Ricardo Severo, publicado na revista
A Cigarra, em 1916, duas fotos da casa. Documentam uma visita
realizada pelo então Prefeito da Capital, o Doutor
Washington Luiz, e sua importância foi decisiva tanto
para o tombamento, cujo processo se inicia em 1945, como para
esclarecer as dúvidas que impediam a restauração
do monumento.
Pesquisas ultimamente efetuadas revelaram novos e importantes
dados sobre essa antiga edificação que pertenceu
ao Sargento-mór Roque Soares Medella. Dentre os documentos
agora descobertos, um inventário de 1803 assim descrevia
a propriedade:
"Citio junto a freguezia e Rio da Cutia Com Cazas Grandes
de taipa de Pilão a Sobradadas em Roda toda a madeira
Serrada Cobertas de telhas Com Seis quartos Com Suas portas
e Suas fixaduras Com hum Salão grande e duas portas
e fixaduras baranda grande atijolada Com hum Oratório
de Talha em hum Canto de baranda..."
Além de casa grande, mencionam-se outros edifícios
que existiam à época, próximo a sede:
"três moradas de Cazas Separadas tão bem
Cobertas de telha Com terras valadas e quintal murado".
A RESTAURAÇÃO
As obras de recuperação
do prédio, empreendidas nos anos 1947/1948, foram relativamente
simples.
Exigiram a substituição das barras de tijolos
que protegiam as bases das paredes por placas de concreto
armado, a reconstituição de quase todo o revestimento
das paredes, a revisão da estrutura e entelhamento
da cobertura, do tabuado do jirau e dos conjuntos de portas
e janelas. O alpendre e os ambientes internos - de chão
batido - receberam piso se solo - cimento e a calçada
de pedras, existente ao redor do prédio, foi recuperada.
As colunas e remates do alpendre puderam ser restaurados a
partir dos fragmentos encontrados e das fotografias feitas
por ocasião da visita do ex-Presidente.
No entanto, a porta da capela, que em 1916 já havia
sido substituída por outra, menor, exigiu pesquisas
e interpretação mais cuidadosas. Os únicos
vestígios das esquadrias originais foram encontrados
numa viga de madeira que, além de suportar o fechamento
de pau a pique da porção superior da parede,
também fazia às vezes de verga da antiga porta,
denunciando sua largura. As folhas e demais remates tiveram
por modelo as peças das outras esquadrias da casa.
Ao longo dos anos, sempre que necessário, é
especialmente devido à inexistência de um programa
de atividades permanentes, o monumento vem recebendo esporádicos
serviços de conservação.
O MONUMENTO
A sede Do Sítio do
Padre Ignácio é, entre todos os remanescentes
das antigas casas senhoriais paulistas do ciclo bandeirista,
os mais sofisticados, o exemplar clássico. É
um projeto arquitetônico que se destaca em meio à
singeleza e austeridade das demais casas que se tem notícia
- fruto do isolamento, autonomia e independência no
trato com a Metrópole portuguesa.
Não obstante, esses vínculos existiam e o Sargento-mór
Roque Soares Medella era um dos seus prepostos na região.
Sua origem, formação e experiência de
vida, mesmo sujeita às marcantes características
da sociedade paulista, tem muito a ver com as soluções
particularíssimas adotadas nas construções
da sede da sua fazenda em Cotia.
A organização dos espaços internos e
o sistema construtivo adotado seguem rigorosamente os princípios
e modelos empregados nas demais edificações
senhoriais; os mesmos alpendres ladeados pela capela e pelo
quarto de hóspedes, a grande sala central para onde
se voltam os demais cômodos, as robustas paredes de
taipa e as poucas diminutas esquadrias de portas e janelas.
No entanto, o perfeito domínio sobre o sistema construtivo
da taipa de pilão permitiu que o edifício ganhasse
maior altura, conferindo-lhe um porte elegante, possibilitando
ainda que internamente, fosse criado um grande jirau, cujo
piso funciona como forro das salas laterais e posteriores.
Ás folhas de portas e janelas, em geral muito simples
receberam discretas almofadas decoradas. O grandioso espaço
da sala e a solene personalidade dos demais ambientes são
contraponto da decoração inusitada das colunas
do alpendre e dos cachorros do beiral da fachada principal,
que sugerem marcante influencia oriental. Até a estrutura
do telhado apresenta requintes que revelam a maestria do seu
artífice, como a deformação programada
de algumas de suas peças que resultaram em concordância
mais suaves nos caimentos da cobertura.
Toda essa sofisticação denuncia a personalidade
de seu proprietário que nunca teria se sujeitado inteiramente
à austeridade e parcimônia paulistas.
Por outro lado, as atividades religiosas de seu filho, o Padre
Rafael Antônio de Barros, exigiram a realização
de adaptações e ajustes na capela, por imposição
do Breve Papau de 1757 - o que explica a grade divisória
de madeira e o óculo existente no ambiente contíguo
que passou a ter função de sacristia.
A OCUPAÇÃO
DO TERRITÓRIO PAULISTA
A ocupação
do território brasileiro limitou-se à instalação
de feitorias e pequenos núcleos ao longo da costa,
para a defesa e apoio às primeiras tentativas de identificação
e comercialização de produtos extraídos
das matas ou obtidos de uma incipiente lavoura tropical.
Segue-se a divisão do território em Capitanias,
que são entregues aos cuidados da iniciativa privada,
medida que, apesar de resultar na criação da
indústria açucareira no Nordeste, e na intensificação
da exploração de madeiras de lei, não
atinge o objetivo de atrair grandes investimentos, promover
a defesa e ampliar o povoamento. A instalação
do Governo Geral, em 1548, representa um esforço no
sentido de organizar as atividades extrativas, consolidar
a produção agrícola e estabelecer uma
rede de Vilas e fortificações articulada e contínua.
Ao lado das iniciativas oficiais, as Ordens Religiosas, especialmente
a Companhia de Jesus, passam a cumprir importante papel, promovendo
o aculturamento do indígena e sua incorporação
ao projeto português de colonização.
Sob o governo de Felipe II, Portugal se envolvendo nas disputas
entre a Espanha e os ingleses, franceses e holandeses, o que
provoca a ocupação de várias regiões
do território brasileiro.
A distância e o fracasso das tentativas de implantação
da agroindústria do açúcar na estreita
e alagada planície costeira do Sul da colônia
provocam a segregação e o abandono das poucas
Vilas que aí se estabeleceram. Isolada, desassistida
e sujeita ao assédio dos corsários, a população
abandona o litoral e busca o planalto, onde estabelece uma
sociedade eminentemente rural, voltada para uma produção
agrícola de poucos excedentes, para a busca de metais
e pedras preciosas e para o apresamento do indígena,
uma vez que não acumulava recursos suficientes para
a importação de escravos africanos.
Estes primeiros imigrantes portugueses mesclaram a sua cultura
e os seus conhecimentos técnicos aos dos indígenas,
criando hábitos e comportamentos próprios e
uma excepcional capacidade de enfrentar a hostil paisagem
do interior.
As primeiras famílias se estabelecem em fazendas, distribuídas
numa grande região em torno de São Paulo, esvaziando
o poder e a função das Vilas que se tornam a
principalmente locais de encontro, por ocasião das
festas religiosas ou quando da necessidade de se discutir
assuntos de interesse comum.
As instituições oficiais refletem estas características,
as Câmaras, por exemplo, se reuniram, por muito tempo,
nas casas de seus membros. Mais do que isso, qualquer empreendimento
oficial na região dependia do apoio material e humano
destas grandes famílias.
Mesmo as reduções ou missões das Ordens
Religiosas, onde eram agrupados e aculturados os indígenas,
estavam fortemente subordinadas aos interesses dos colonos,
que lhes cediam terras e os meios de sobrevivência;
as mais distantes e autônomas, não raro, eram
objeto do assédio das bandeiras de apresamento.
UM FIDALGO A SERVIÇO
DO REI
Dentre os direitos usufruídos
pela nobreza portuguesa, detinham os seus membros, por tradição,
os altos cargos da Administração, da Justiça
e da Defesa do Reino - privilégio que se estendeu,
depois das grandes descobertas, aos Domínios Ultramarinos.
Roque Soares Medella foi um desses fidalgos que, no Brasil,
gozou dessa prerrogativa. Nascido na Vila do Conde, pouco
ao Norte da cidade do Porto. Província do Moinho, era
filho de Luiz Soares de Anvers, e de Benta de Medella. Ocupou
vários cargos na Administração da Colônia.
Principalmente na Vila de Nossa Senhora do Carmo, aonde foi
enviado para auxiliar na fiscalização da extração
e transporte do ouro e, já na condição
de Capitão de Ordenanças, arremata a cobrança
dos Dízimos Reais pela avultada quantia de mais de
onze arrobas do nobre metal. Notabilizou-se quando da sublevação
havida contra o Ouvidor Geral Manuel da Costa Amorim, mandando
prender "com grande risco de sua vida, os cabeças
dela, sendo-lhe necessário puxar por todos os seus
negros, para guarda de sua pessoa".
De retorno a São Paulo, desempenha outras funções
no Senado da Câmara antes de ser nomeado Sargento-mór
da comarca da Capital. E, pouco antes de falecer, foi-lhe
confiado o ambicionado posto de Guarda-mór das Minas,
por provisão de 7 de junho de 1740.
Foi, em sua época, "pessoa das mais ricas e afazendadas"
da Capitania de São Paulo. Casou-se com Dona Anna de
Barros, da família Veiros, de conhecida nobreza reinól,
e natural da freguesia de N. Sra. do Montesserrat da Cotia,
aonde veio a se estabelecer com grande escravaria. Anos depois
(1723), requer ao Capitão General da Capitania a concessão
das terras onde havia se estabelecido e "edificado habitação"
- a casa-grande hoje conhecida pela denominação
Sítio do Padre Ignácio.
O FILHO CAÇULA:
RAFAEL ANTONIO DE BARROS
A casa-grande construída
no início do século XVIII pelo Sargento-mór
Roque Soares Medella e sua mulher Anna de Barros foram, entre
os "bens de raiz" por eles amealhados, a principal
habitação do ilustre casal, a sede do estabelecimento.
Possuíam outros edifícios de morada, tanto nas
terras da fazenda como no pequeno núcleo urbano de
Cotia e até mesmo na Capital, porém nenhum parece
ter merecido o cuidado e o requinte de soluções
adotadas na fatura desta residência.
Com a morte do marido em 1741 e o casamento dos filhos, Anna
permanece na casa-grande em companhia do filho caçula
Rafael Antonio que, ao contrário dos irmãos
Ignácio e Francisco, resolve não seguir a carreira
militar. Coube-lhe a responsabilidade pelos trabalhos da fazenda,
embora gostasse especialmente de ocupar-se com as leituras
e o labor intelectual.
Depois do falecimento de sua mão, Rafael torna-se proprietário
não só de boa porção das terras
e de grande escravaria, como também do edifício
principal da fazenda.
Casando, de certo os irmãos terão recebido bens
e incorporado outros - o que explique o aparente favorecimento
de Rafael na divisão do espólio. Mais tarde,
anexará ainda a seu patrimônio as terras de Sorocamirim,
que obtém em sesmaria em 1767.
Embora dedicasse boa parte de seu tempo à administração
da fazenda, não deixava de vir a capital, especialmente
para participar das práticas religiosas realizadas
na Capela da Ordem Terceira de São Francisco, da qual
era Irmão.
Aos 30 anos de idade, decide-se pelo sacerdócio - função
mais apropriada às suas inclinações intelectuais
e, na época, escoadouro natural a indivíduos,
como ele, oriundo de famílias abastadas e nobres.
UM PRIVILÉGIO
MUITO ESPECIAL
Rafael Antonio de Barros
ordena-se em 1756.
Decorrido, todavia, um ano apenas, vale-se da proeminência
de sua origem para obter, do Papa Benedito XIV, um Breve que
lhe concede permissão para "Celebrar o Sacra-Santo
Sacrifício da Missa nos oratórios privados das
Casas que existem de sua habitação - ou seja,
no oratório que existia na capela situada ao fundo
do alpendre da sede da fazenda e no da casa urbana que possuía
no povoado de Cotia.
Podia ministrar uma só missa por dia e somente aos
familiares. Mas, quando celebrada no "oratório
rural", podiam outras pessoas ouvi-la na qualidade de
hóspedes - artifício que lhe permitiria contratar
missas, justificadas pela distância que as separava
da Matriz.
As diligências feitas pela Câmara Episcopal, em
1758, atestaram que o oratório da casa-grande estava
"separado das demais dependências e desimpedido
de todos os usos domésticos" e continha os paramentos
"das quatro Cores de que usa a Igreja", estando
pois "devidamente ornado e com a decência para
nele se poder Celebrar".
Documentos posteriores revelam a riqueza de seu acervo: o
Oratório era de madeira entelhada, com "Altar
e frontal prateado". A imagem de Nª Srª do
Rosário, ao centro, com sua coroa de prata, brincos
e rosário de ouro, era ladeada pela Senhora da Conceição
com seu "Manto de Seda carmesim forrado de azul",
pela Nª Srª da Penha e pelo Senhor crucificado,
com resplendor de prata. Castiçais, galhetas, calix,
tudo de prata, completavam a ornamentação. Nas
paredes, gravuras de São Francisco e da Srª do
Amparo com o Menino. E, no cômodo ao lado que servia
de sacristia, ainda outra Conceição com seu
manto de seda. O Oratório Particular era um privilégio
vitalício, porém não hereditário.
A pessoa agraciada tinha o seu nome expressamente declarado
no Breve Papal. Regido pelas Leis Canônicas, não
era, todavia um benefício concedido exclusivamente
aos membros da Igreja. Podiam os leigos também pleiteá-lo;
cabendo às autoridades eclesiásticas concedê-lo
ou não.
PADRE RAFAEL - O PATRIARCA
Com o passar dos anos, falecendo
os irmãos, surge a necessidade de amparar as viúvas
e as sobrinhas ainda solteiras, bem como outros parentes,
por vezes numerosos, que viviam "agregados" em suas
casas. Padre Rafael, além da assistência religiosa
habitual, é reclamado também a socorrer este
ou aquele familiar mais necessitado. Afinal, era dono de terras
e de uma escravaria que lhe permitiam "viver abastadamente".
Converte-se assim, no Patriarca da família.
A produção de suas propriedades, embora não
fosse nada excepcional - afora as 20 éguas e as 30
vacas de ventre e suas crias que reunira nos campos de Sorocamirim,
colhia em sua fazenda do "Bairro Sobre o rio de Cutia"
muito milho e ainda "amendoim, feijão, Cevada
e algodão q' manda fiar e tecer" -, era todavia
suficiente para "o Seu passar e conservação
de sua pessoa e numerosa família".
Embora sempre tivesse percorrido, à cavalo, a estrada
de quase uma légua até a freguesia de Cotia,
a idade e os afazeres cotidianos da fazenda acabam por afastá-lo
mais e mais das funções que lhe competiam desempenhar
na Matriz. No oratório de sua casa, junto à
imagem da Senhora do Rosário, a santa de sua devoção,
procura compensar as faltas para o vigário José
Manoel d'Oliveira, assistindo também aos moradores
da região.
Faleceu em 1803, aos 79 anos de idade.
Deixou como herdeira da maior parte de seus bens uma sobrinha
e afilhada que tinha o mesmo nome de sua mãe - a filha
mais velha de seu irmão Francisco e de Luiza Leme de
Barros.
ANNA E SEU PRIMO, O PADRE
IGNÁCIO
Desse modo, Anna de Barros
Leme torna-se proprietária da casa-grande construída
cerca de um século antes por seu avô, o Sargento-mór
Roque Soares Medella, e alça a uma condição
de vida razoável, suficiente porém para ainda
manter o estilo de vida senhorial, e continuar zelando pelo
nome e tradições da família; cultivar
enfim, como se dizia à época, hábitos
próprios dos que "vivem a Ley da Nobreza".
Possuía poucos escravos; mesmo assim conseguia colher
bastante milho e feijão que, em parte, vendia.
Os censos da população de Cotia registram, entre
os agregados da fazenda, no bairro da Graça, o seu
primo Ignácio Francisco do Amaral que, viúvo,
com ela vivia desde 1798; comparecendo também ao longo
dos anos, as filhas Rita, Anna Francisca e Luiza Maria e o
filho varão, o Capitão Joze Soares de Camargo.
Ignácio torna-se padre em 1810, aos cinqüenta
e sete anos de idade. Três anos depois, Anna obtém
para si e seus filhos, um Breve Apostólico que os autoriza
a ter Oratório Particular em sua "Fazenda de N.
Sra. do Rozário".
Padre Ignácio passa a realizar os ofícios religiosos,
dando prosseguimento a uma prática aí iniciada
meio século antes pelo Padre Rafael Antonio de Barros.
Anna morre em 1838. Ignácio em 1846, aos 94 anos de
idade.
A fazenda ainda permanecerá em posse da família
por cerca de 45 anos, concentrando-se porém nas mãos
do Alferes Francisco Rodrigues César, casado com Maria
do Ó, neta de Dona Anna de Barros Leme, o qual adquire
dos demais herdeiros parte do que lhes coube na divisão
dos bens por ela deixados.
Em 1883, a sede da antiga fazenda setecentista será
finalmente vendida com uma pequena porção de
terreno a imigrantes alemães.
Contudo, na memória popular, a casa-grande, permaneceria
associada à figura do Padre Ignácio.
GLOSSÁRIO
Aclive: ladeira, inclinação
do terreno.
Almofadas: relevos aplicados aos tabuados de folhas de portas
e janelas com função decorativa.
Beiral: parte do telhado que ultrapassa a prumada das paredes
externas de um edifício, protegendo-as das águas
das chuvas.
Breve Papal: documento em que o Papa se manifesta sobre uma
consulta ou pedido de caráter particular.
Cachorros: peças de madeira ou pedra que sustentam
os beirais das coberturas ou balcões de uma fachada.
Gomil: jarro de boca estreita, de metal ou cerâmica.
Jirau: plataforma executada à meia altura de um cômodo,
para proteger alimentos ou como depósito.
Mós: pedras circulares utilizadas nos moinhos, entre
as quais se moem os grãos.
Óculo: abertura circular para ventilação
e iluminação interna.
Solo cimento: argamassa de terra e cimento que, umidecidos
e compactados, pode alcançar grande resistência.
Tabique: parede delgada que serve para dividir um compartimento.
Taipa de pilão: sistema construtivo introduzido na
Europa pelos árabes, no qual as paredes e muros eram
feitos apiloando-se terra úmida dentro de grandes formas
de madeira.
Verga: peça horizontal do requadro de uma porta que
se apóia sobre os batentes laterais.
IPHAN
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1947 - Aspectos
da remoção do encamisamento de tijolos e da
execução de placas de concreto armado.
1942 - Sede do Sítio
do Mandú, em Cotia
1942 - Fachada antes das
obras de restauração. Notar as colunas de tijolos.
Abaixo: fragmentos das colunas de madeira primitivas.
Aspectos da edificação
tal como foi encontrada.
16/1948 - Foto da segunda
visita do ex-Presidente Washington Luiz ao monumento ao se
concluir sua restauração em 1948. Levantamento
executado pelo arquiteto Victor Dubugras.
1948 - Aspecto da estrutura da cobertura a partir do jirau:
e comodo contíguo à capela que servia como sacristia
da mesma.
1948 - Detalhe do cachorro
decorado dos cunhais da fachada e aspecto da sala principal
da casa-grande do sítio do Padre Inácio
1948 - Detalhe da viga que
possibilitou a reconstituição da porta da capela
e aspecto de um dos móveis antigos que ainda guarneciam
a residência.
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