"Era em Santo
Amaro da Purificação, no recôncavo baiano, que
se dançava o Maculelê, dentro das celebrações
profanas locais, comemorativas do dia de Nossa Senhora da Purificação
(2/Fev.), a santa padroeira da cidade. No restante do estado da
Bahia, desconhecia-se o folguedo.
Essa manifestação
de forte expressão dramática, ponto alto dos folguedos
populares, destinava-se a participantes do sexo masculino que dançavam
em grupo, batendo as grimas (bastões) ao ritmo dos atabaques
e ao som de cânticos em linguagem popular, ou em dialetos
africanos. Dentre todos os folguedos existentes em Santo Amaro,
cidade marcada pelo verde dos canaviais, o Maculelê era o
mais rico em cores. Seu ritmo vibrante contagiava a todos.
São contraditórias
e pouco esclarecidas suas origens. Tem-se como um ato popular de
origem africana que teria florescido no século XVIII nos
canaviais santo-amarense e que se integra, há mais de duzentos
anos, nas comemorações daquela cidade. Um dos seus
registros mais significativos consta na nota fúnebre publicada
pelo jornal "O Popular" (10/Dez/1873), que circulava em
Santo Amaro: "Faleceu no dia primeiro de dezembro a africana
Raimunda Quitéria, com a idade de 110 anos. Apesar da idade,
ainda capinava e varia o adro (terreno em volta) da igreja da Purificação,
para as folias do Maculelê.
No início
deste século, com a morte dos grandes mestres de Maculelê
daquela cidade, o folguedo começou a desaparecer, deixando
de constar, por muitos anos, das festas da padroeira. Em 1943, outro
mestre, Paulino Aluísio de Andrade, conhecido como Popó
do Maculelê e considerado como "pai do Maculelê,
no Brasil", reuniu parentes e amigos para ensiná-los
a dançar, com base nas suas lembranças, pretendendo
inclui-lo novamente nos festejos religiosas locais. Seu grupo passou
a ser conhecido como "Conjunto de Maculelê de Santo Amaro".
A respeito, a pesquisadora
Hildegardes Vianna chama à atenção para uma
remota referência quanto à existência de "uma
dança esquisita de gente preta da roça, que aparecia
nos festejos de N. S. da Conceição e de N. S. da Purificação".
Entretanto, é através dos estudos de Monoel Querino
(1851-1932) que se encontram indicações de tratar-se
o Maculelê de um fragmento do Cucumbi, uma dança dramática
em que os negros batiam pedaços roliços de madeira,
acompanhados de cantos. Em seu "Dicionário do Folclore
Brasileiro", Luís da Câmara Cascudo aponta a semelhança
do Maculelê com os Congos e Maçambiques. Emília
Biancardi escreveu um livro de título "Olelê Maculelê",
considerado como um dos estudos mais completos sobre o assunto.
Como a intenção
aqui não é arrolar todas as hipóteses levantadas
sobre as origens dessa dança folclórica, os exemplos
acima citados já servem para demonstrar o grau de incerteza
que persiste com relação às possíveis
interpretações sobre os primórdios do Maculelê.
Vale, como sugestão, para que os jovens pesquisadores se
aprofundem na temática.
Mesmo considerando
que já não vivem os praticantes primitivos dessa dança,
devem por certo existir ainda valiosos documentos inéditos
com dados esclarecedores, para subsidiar a elaboração
da hipóteses mais consistentes a respeito dessa manifestação,
tão pouco estudada nos dias de hoje.
Conheci o Maculelê,
na década de 60, no bairro do Barbalho, em Salvador, por
intermédio do grupo folclórico do Instituto de Educação
Isaías Alves, do qual participavam alguns alunos do mestre
Bimba. Nessa época, existia também um grupo, chamado
"Viva Bahia", que ficou famoso por divulgar várias
manifestações do folclore baiano: Maculelê,
Candomblé, Puxada de Rede, Samba de Roda e Samba Duro. Fazia
apresentações em teatros, colégios e universidades
de Salvador, e mais tarde, em outras capitais brasileiras. Em 1966,
o Maculelê saiu pela primeira vez da Bahia, para figurar no
Carnaval carioca, compondo uma ala da escola de samba "Império
Serrano". Do grupo, participava o Saci, um capoeira importante
da academia do Mestre Bimba.
Minha familiarização
com o Maculelê ocorreu no Centro de Cultura Física
Regional da Bahia, a academia do Mestre Bimba, onde um grupo de
exibição da Capoeira incluía no repertório
também apresentações de Cadomblé , Samba
de Roda e Samba Duro. Tempos depois, com a divulgação
do Maculelê, Mestre Bimba resolveu introduzir essa modalidade
folclórica nas apresentações. Quem ensinou
o Maculelê ao grupo foi Poponé, um dos integrantes
do "Viva Bahia", que já tinha um irmão carnal,
Capanga, treinando na academia. Minha preocupação
maior na época era aprender a Capoeira mesmo assim me envolvi
bastante com o Maculelê.
Em 1968, quando cheguei
ao Rio de Janeiro, me integrei ao Grupo Senzala, que vivia sua fase
de crescimento, tornando-se cada vez mais conhecido. Surgiu então
uma oportunidade de o fazer uma temporada na sala Cecília
Meireles, no Rio, e ficou decidida a inclusão do Maculelê
no repertório. Muitos alunos do Grupo Senzala, hoje mestres,
aprenderam a dançar comigo. Aliás, não só
o Maculelê, mas também o Samba de Roda, o Samba Duro
e a Puxada de Rede. Surgiu depois a oportunidade de realizar um
show folclórico, desta feita, no Teatro Opinião, e
se repetiu o repertório, acrescido de novas manifestações.
Vale destacar que,
no início, houve certa resistência ao Maculelê
por parte dos integrantes do grupo Senzala que, talvez por desconhecimento,
o consideravam uma efeminada. Foi necessário levar um aluno
graduado do grupo à Salvador para observar in loco e aprender
na terra de origem, para que ele então auxiliasse meu trabalho
de ensino da coreografia e do ritmo aos demais componentes do grupo
Senzala. A partir daí, outros grupos de Capoeira do Rio de
Janeiro também incorporaram o Maculelê em suas apresentações
públicas.
Em 1969, a Escola
de Ballet da Bahia apresentou o Maculelê em um espetáculo
de música erudita com um quadro intitulado "Festa Nordestina",
coreografado, sob minha orientação, por Dalal Achcar.
Surgiu assim a oportunidade de divulgar o trabalho em todo o Brasil.
Mais tarde, quando
estudava e na condição de mestre responsável
pelo ensino da Capoeira, na então Universidade do Estado
da Guanabara (atual UERJ), colaborei na divulgação
do Maculelê junto à disciplina de Folclore. Atualmente,
essa dança se encontra perfeitamente integrada na relação
de atividades folclóricas brasileiras e é freqüentemente
apresentada em exibições de grupos de Capoeira, grupos
folclóricos, colégios de diversos níveis e
universidade.
Cumpre-me registrar
entretanto que, nesse trabalho de disseminação, o
Maculelê vem sofrendo profundas alterações em
sua coreografia e indumentária, cujo resultado reverte em
uma descaracterização. Exemplo: o que era originalmente
apresentado como uma dança coreografada em círculo,
com uma dupla de figurantes movimentando-se no seu interior sob
o comando do mestre do Maculelê, foi substituído por
uma entrada em fila indiana com as duplas dançando isoladamente
e não tendo mais o comando do mestre. O gingado quebrado,
voltado para o frevo, foi substituído por uma ginga dura,
de pouco molejo.
Mais recentemente,
faz-se a apresentação sem a entrada em fila. Cada
figurante posta-se isoladamente, sem compor os pares, e realiza
movimentos em separado, mais nos moldes de uma aula comum de ginástica
do que de uma apresentação folclórica requintada.
Deve-se reconhecer
que não só o Maculelê mais por todas as demais
manifestações populares vivas ficam sempre muito expostas
a modificações ao longo do tempo e com o passar dos
anos. Assim aconteceu no Rio de Janeiro com o Maculelê original,
vindo da Bahia: sofreu alterações. Entendo que todas
essas modificações devam ficar registradas, para permitir
que os pesquisadores, no futuro, possam estudar as transformações
sofridas e também para orientar melhor aqueles que vieram
a praticar esse folguedo popular, de extrema riqueza plástica,
rítmica e musical, que é o Maculelê".
Esse foi o depoimento
do Mestre Baiano Anzol sobre o Maculelê.
|