C.A. , in Os Escravos (O Sol e o Povo)
Senhoras e Senhores,
estamos reunidos aqui para falar sobre
a Congada de Cotia - e quando, nesta hora, celebramos
também os 150 anos do nascimento do poeta Castro
Alves, um grande abolicionista.
Com os navios carregando prisioneiros feitos
no ventre da Mãe África, os portugueses
de Quinhentos, com a benção da Cristandade,
fizeram a desgraça de um lado do mar-de-longo para
a transportarem para o outro lado. A ilha que os céltico-fenícios
chamaram de brazil - isto é: terra grande - recebeu
os filho d'África e deles bebeu o suor e o sangue;
suor e sangue de gente humilde e gente de alta linhagem,
o que, em Escravatura, não tem significado social
algum. A primeira resistência começou precisamente
aí: o respeito, entre os filhos d'África,
às suas tradições e mitos.
Chegaram de Moçambique, do Congo,
d'Ifê (a grande nação iorubana da
Nigéria), de Cabo Verde, da Guiné, d'Angola...
enfim, os africanos logo perceberam que à sua resistência
teriam de aliar o fator umbigo-Colônia: ora, se
tudo foi feito com a Cruz de Cristo, e por Deus, a salvação
estaria na aliança cultural das mitologias trazidas
da Mãe África com a mística da Cristandade.
Em razão dos sistemas socio-tribais
e políticos que fizeram nascer na África
as cidades-estados, modelo depois copiado no novo continente
chamado Europa, a Religião era e é, entre
os africanos, um sistema vário. No exílio
forçado, os africanos se encontraram numa luta
comum contra a Escravatura - mas, os seus rituais continuaram
obedecendo, particularmente no Brasil, às características
vividas na Mãe África.
E nasceram os Terreiros, exteriorizando
diferentemente a Dança como ritual religioso e
social. As primeiras manifestações de Afro-Brasilidade
dentro do próprio Império Português.
Estabelecendo paralelos entre os rituais aprendidos nas
aldeias nativas d'África e a liturgia do Catolicismo
romano, os escravos viraram o feitiço contra o
feiticeiro - aí, o Colonizador Português
víu-se como rato fugindo do bojo do Navio Negreiro
que lhe servira como símbolo do Imperial Poder.
... boca de mil escravos
Que transformaram-se em bravos
Ao cinzel da abolição
C.A., in Os Escravos ( O Seculo)
eis como o grande Castro Alves víu
e sentíu a virada de consciência e o assimilar
de uma nova Cultura: a Afro-Brasileira.
Foi neste contexto que as associações,
ou irmandades (termo tomado das tradições
judeo-cristãs e maçônicas), como A
Congada, surgiram pelo Brasil. E entre as nações
assim representadas estava o Congo, de religiosidade e
sociedade Banto - de onde o nome Congada.
Para uns, a Congada é o mesmo que
a Dança do Moçambique. Mas há diferenças,
sim: a Congada tem embaixada e a sua dança usa
um ritmo cadenciado que lembra os ritmos célticos
d'Os Pauliteiros de Miranda do Douro (região montanhosa
de Portugal), enquanto que a d'O Moçambique não
tem embaixada e é um cortejo mais rude; e no entanto,
ambos os estilos da Cultura Afro-Católica têm
como padroeiro S. Benedito. Também, em ambas, a
Ação Comunitária dá-lhes plena
Cidadania. É um Povo que leva
... no peito um coração deserto,
Carregando o troféu de uma pesada Cruz!
como cantou o poeta cotiense Baptista Cepellos,
no poema Cysne Encantado. Um deserto aos poucos povoado
com a certeza de uma Cidadania que, após a Abolição,
levaria os escravos à Liberdade no âmbito
da Cultura Afro-Brasileira, embora que sob a Língua
portuguesa.
Eis como, falar da Congada - que interpreta
o ritual de coroação de um Rei Congo como
forma de afrontamento à Escravatura -, é
falar de História do Brasil!
Da Senzala ao altar da Casa Grande, passando
pela Abolição e a interação
africanismo-catolicismo, a tradicional Festa Da Congada
está em Cotia desde meados do Séc 20 e faz
parte dos eventos comunitários da região,
aos 13 de Maio, em cânticos de louvor à Raça
Negra, ao Brasil e a S. Benedito.
Termino esta minha intervenção
cultural sobre a Congada invocando novamente Castro Alves,
porque nunca é demais chamar os povos à
defesa integral da Liberdade para não caírem
na libertinagem d'Á Beira do Abysmo:
A celeste Africana, a virgem-Noite
Cobria as faces... Gotta a gotta os astros
Cahiam-lhe das mãos no peito seu...
Um beijo infindo suspirou nos ares...