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Entre o Piabyu e o Hiato Histórico

Ou: o Brasil que os livros oficiais ignoram!

Por João Barcellos

Os dados oficiais da História Luso-Brasileira, no que às primeiras décadas do Séc. 16 diz respeito, nada esclarecem sobre a presença dos pré-colonizadores, aqueles degredados lusos e castelhanos, a par de alguns náufragos, que constituíram autênticos impérios na zona costeira, como O Bacharel de Cananéia, e na zona da mata e também litorânea, o Carumuru, na Bahia, ou como João Ramalho, no Planalto paulista. E quando, por exemplo, fala sobre Martim Afonso de Sousa o faz como se a expedição por ele comandada tivesse tido algum êxito...

No caso do nobre Martim Afonso de Sousa, a expedição tinha como alvo a "Sierra de la Prata" ou o "território do imperador branco", na realidade, o "eldorado" que os castelhanos encontraram e dizimaram no Peru. O alvo da expedição marítima portuguesa era subir a rota fluvial do Piabyu, pelo Rio Paraguay, enfrentar os ferozes nativos Charrua e, com ajuda do nativos Carijó, a partir da sua Koty (ou Acutia, como identificou Hans Staden em seu livro de memórias) na região de Laguna, alcançar as riquezas do "eldorado" que estavam na fala de todos os povos da floresta.

Ao contrário do que afirmam alguns historiadores oficiais, a expedição de Martim Afonso de Sousa não foi encarregada de colonizar (povoar estava fora de questão: a "Ilha Brasil" já era povoada!...) a costa entre Cananéia (São Paulo) e Laguna (Santa Catarina), sim, de alcançar o "eldorado" pela rota fluvial do Piabyu. Não o conseguindo, aquele nobre retornou a Portugal. Pouco tempo depois, segundo rezam os documentos e os relatos de Sólis (português naturalizado castelhano) sobre sua própria expedição, o castelhano Pizarro encontrou o caminho e alcançou o Peru. A partir desse instante, a famosíssima Rota do Piabyu, percorrida por rio ou por terra e que ligava as diversas aldeias denominadas Koty (ponto-de-encontro) pelos Carijó, como verificaram os germânicos Hans Staden e Ulrich Schmidel, deixou de ter interesse. Só no Séc. 17 a Rota do Piabyu retornou ao cotidiano dos aventureiros quando as Bandeiras organizadas por Raposo Tavares e Fernão Dias Paes (sobrinho) o assumiram para bloquear o "império jesuítico" que os padres queriam construir no Paraguay.

Os primeiros colonos europeus foram degredados que, inserindo-se no cotidiano das nações dos povos da floresta, transformaram-se em senhores de terras, madeiras (pau-brasil) e de escravos, com relevância muito particular para O Bacharel de Cananéia. E, mesmo depois, em pleno "ciclo bandeirista", o cerco, genocídio e escravidão dos povos da floresta gerou, na figura do Bandeirante, a imagem cruel da mais pura desumanidade. Esquecida a Rota do Piabyu, na qual Portugal perdeu o "eldorado", o "ciclo bandeirista" tratou de faiscar e minar na busca do ouro. Um dos povos que mais sofreu foi o Carijó, praticamente dizimado em meados do Séc. 17, e a Língua Tupi-Guarani, que levou a mesma sorte através da brutal catequização católica.

Acerca do Caramuru, na verdade Diogo Álvares Correia, sabe-se que deve ter naufragado ou obrigado a ficar em terra no ano de 1509, uma vez que ficou isolado (o que aconteceu com muitos e foi uma maneira de os capitães saberem das reações imediatas dos nativos); o certo é que ao avistar os nativos quando emergia das águas fez disparar a sua arma de fogo - daí o nome Caramuru ("homem do trovão") que recebeu da nação que o acolheu, a Tupinambá. Os verdadeiros bahianos além de darem guarida ao Caramuru fizeram-no chefe-guerreiro e casaram-no com várias nativas. Foi, talvez, porque as datas são incertas, o primeiro pré-colonizador europeu e o primeiro a gerar a luso-brasilidade. Pela mesma época, no hoje litoral de São Paulo, a nação Carijó, entre outras, recebeu João Ramalho no planalto onde os jesuitas viriam a erguer a Aldeia de São Paulo nos Campos de Piratininga; este português teve o mesmo destino do Caramuru mas situou-se quase sempre mata adentro e pela boca do sertão que levava à Rota do Piabyu através da Koty ali instalada. A sua influência entre os nativos foi notória e ajudou em muitas situações de guerra aberta entre europeus recém-desembarcados e os povos da floresta. Já o enigmático Cosme Fernandes Pessoa, conhecido como O Bacharel de Cananéia entre quantos tocavam a costa de Cananéia a Laguna, e como Mestre Cosme entre os que ele recebia e alimentava e armava, tornou-se uma espécie de imperador da "costa da prata e do ouro"; foi ele quem iniciou na costa da "Ilha Brazil" o trâfico de escravos com apoio dos povos que o tornaram chefe-guerreiro: e, entre Cananéia e Laguna ninguém ousava opôr-se às decisões daquele que gostava de falar, aquele "individuo que habla mucho, el bacharel" - como diziam os castelhanos de então: crê-se, daí o nome O Bacharel de Cananéia.

A não ser em casos extremamente isolados, as congregações católicas participaram ativamente do processo entre a pré-colonização e a colonização já no "ciclo bandeirista" beneficiando-se de terras, no que constitui até hoje um "feudo" pétreo. Jamáis uma "entrada" ou uma "bandeira" eram organizadas sem a presença dessas congregações. E, particularmente ao longo da Rota do Piabyu, a fluvial e a terrestre, os degredados e os náufragos dividiram as sortes com os padres entre os povos da floresta, o que constituíu, também, a oficialização do genocídio, uma vez que a Igreja católica presidia, praticamente, às ações das Coroas lusa e castelhana. Realmente, a catequização católica - particularmente através dos jesuitas - superou as ações para-militares dos bandeirantes ao invadir e destruir o universo da Língua Tupi-Guarani. Eis a verdade da História que, só 500 anos depois e apesar do Pe. Vieira e do Morgado de Matheus, o Vaticano reconhece e se penitencia. Tarde demais.

Eis que a Ilha Brazil - e "brazil" era um nome já utilizado entre os povos celtas quanto a uma ilha e outros povos quanto a uma madeira utilizada para tingimento (particularmente entre asiáticos desde o Século II dC), de onde "brazileiros" (os que carregavam o pau-brazil), como consta da documentação espersa por vários arquivos portugueses e espanhóis - formou-se, sim, através do escravagismo comandado por degredados e náufragos gerando as primeiras comunidades às margens, inclusive, dos interesses da Coroa portuguesa, mas esta interessou-se e integrou-os, mais tarde, concedendo-lhes terras e outros benefícios.

Como a História é feita à luz de documentos é bom que se transforme as comemorações do Brasil-500 Anos num amplo debate. (*João Barcellos - escritor, pesquisador, autor dos livros "Morgado de Matheus", "Cotia..." e "Exuberância e Folia no Mar de Longo", entre outros)


 
   

Idealizado por:
CRISTINA OKA & AFONSO ROPERTO©
Última atualização: 15 February, 2002